Aspectos do negativo em Espinosa


De certo ponto de vista, a filosofia de Espinosa pode ser considerada como um pensamento da positividade radical. Um exemplo paradigmático de tal ponto de vista é a caracterização que Hegel faz dessa filosofia ao longo de suas obras, especialmente nas Lições de História da Filosofia, nas quais espinosismo e eleatismo são entrelaçados como formas semelhantemente parciais e unilaterais do desenvolvimento do espírito absoluto, justamente por não concederem suficiente importância à negatividade. Assim, a asserção de Espinosa, segundo a qual "omnis determinatio negatio est" (toda determinação é uma negação), é tida por Hegel como "o grande princípio de Espinosa" e assumida como equivalente à posição de Parmênides, segundo a qual "qualquer que seja a forma que assume o negativo, ele absolutamente não é" . A pregnância de tal caracterização hegeliana - 1 enraizada no contexto da chamada querela do panteísmo (Pantheismusstreit) na Alemanha do final do século XVIII - é notável ao longo do século XIX até meados do XX e até mesmo em leituras mais contemporâneas que apresentam o espinosismo como uma filosofia puramente solar, na qual as formas do negativo (e.g. a finitude, a falsidade, a contradição, a morte, etc.) são, no limite, assim como as trevas, meras privações ou figurações imaginárias ou linguísticas do nada, isto é, nada mais do que entes de razão ou sopros de voz. Tome-se aqui, também como exemplo paradigmático, o debate - desenvolvido entre os intérpretes que pretendem alguma aproximação entre a ética de Espinosa e a psicanálise freudiana - sobre a suposta incompatibilidade entre, respectivamente, a metafísica do conatus e a pulsão de morte em Freud. Ora, no presente mini-curso, é nossa intenção trazer elementos para questionar uma tal visão, recuperando o chiaroscuro que, a nosso juízo, melhor caracteriza a filosofia espinosana como filosofia legitimamente barroca. Para tanto, pretendemos, num primeiro momento, apresentar o que chamamos de "tópica do eleatismo espinosano", dando exemplos de diferentes cultores dessa tópica (especialmente Bayle, Kant, Leibniz, Hegel e Freud) e formando um apanhado de lugares comuns (topoi) que - mesmo sem maiores aprofundamentos na exegese de cada um desses autores - bastará para configurar o quadro mais amplo que será nosso alvo de críticas nos passos seguintes. Num segundo momento, trataremos especialmente da questão da morte na obra de Espinosa, tendo no horizonte o já mencionado debate sobre a tensão entre o conatus espinosano e a pulsão de morte freudiana, como via para problematizar o lugar do negativo em seu pensamento. Finalmente, num terceiro momento, procuraremos rematar nossa exposição com algumas considerações sobre o estatuto de dois princípios lógicos na filosofia espinosana: o princípio de não-contradição e o princípio do terceiro excluído, defendendo que, se, por um lado, Espinosa de fato aceita esse primeiro princípio, por outro lado, quanto ao segundo, diversas teses espinosanas sugerem a recusa da validade irrestrita do tertius exclusus. Dentre essas teses, daremos destaque especialmente às que concernem (a) à doutrina dos modos de perceber como diversos modos da afirmação e da negação; (b) às condições de admissibilidade das demonstrações por via analítica e por redução ao absurdo e (c) à articulação entre a doutrina das definições genéticas (recusa da definição por propriedades), a doutrina das existências e essências afirmativas (recusa da existência abstrata) e a doutrina da causalidade imanente (recusa do alijamento ontológico da alteridade do efeito).


CONTEÚDO PROGRAMÁTICO.

Dia 1) A tópica do eleatismo espinosano (Cristiano N. de Rezende & Maykel M. de Paiva)
 
(i) Introdução metodológica: o conceito de tópica como legitimador do levantamento subsequente de excertos sobre o suposto eleatismo de Espinosa. 
(ii) A Tópica do eleatismo Espinosano em Hegel: seleção de excertos hauridos do livro de Pierre Macherey, Hegel ou Spinoza (MACHEREY 1990)
(iii) A tópica do eleatismo Espinosano antes de Hegel: excertos de Bayle, Leibniz e Kant. 
(iv) A tópica do eleatismo Espinosano depois de Hegel: um excerto de Freud. 


Dia 2) A morte em Espinosa: um caminho e um limite para pensar o negativo. (Maykel M. de Paiva)
 
(i) Heranças hegelianas na tradição interpretativa de Espinosa: a morte como nada. 
(ii) A morte e o morrer: intersecções entre linguagem e ontologia. 
(iii) Dar à imaginação o que é da imaginação: uma alternativa espinosana. 


Dia 3) Espinosa na fratria dos suspeitos do parricídio de Parmênides (Cristiano N. de Rezende)

(i) Retomada crítica da tópica do eleatismo espinosano: Espinosa e os princípios lógicos.
(ii) Os modos de perceber como flexões da afirmação e da negação. 
(iii) Via analítica e redução ao absurdo no espinosismo: usos admissíveis da ausência determinada e do operador de negação. 
(iv) Existências e essências afirmativas: as definições fecundas e a lógica de base da alteridade imanente. 


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